GRUPO ENGENHO – Vou Botá Meu Boi Na Rua (1980)

25/06/2013

Eu vou sair pela cidade
Vou usar minha razão
Eu vou mudar esta história
Com o meu boi de mamão

Trecho da música Vou Botá Meu Boi Na Rua

Pode parecer meio óbvio escolher o álbum do Engenho, Vou Botá Meu Boi Na Rua, para começar a nova temporada de resenhas do blog. Acontece que, nesta “primavera” de manifestações que floresce em pleno início de inverno no Brasil, não dá pra deixar de citar o mais saliente manifesto sonoro pela valorização da arte e da cultura popular catarinense.

Capa do álbum Vou Botá Meu Boi Na Rua (1981)

É desnecessário contar toda a história do grupo Engenho – o principal você pode ler aqui e aqui, se quiser conhecer um pouco mais. Vamos diretamente ao disco Vou Botá Meu Boi Na Rua, que foi lançado em 1981 e é bem mais do que apenas mais um álbum de uma banda daqui. O Vou Botá...  é uma perfeita tradução sonora da paisagem cultural de regiões diversas do estado – predominantemente oeste e litoral. Não é à toa que a primeira faixa do vinil, Baião de Milhões, basicamente apresenta a cosmopolia do grupo:


Sou daqui, sou do mato
Sou da vida, sou da morte
Leste, oeste, centro-oeste
Sou do sul e sou do norte


Na sequência, vem Barra da Lagoa (ou Lagoa da Conceição, como prefere denominar Neco, o autor da música). A composição está entre as mais conhecidas do Engenho, inclusive tendo sido tema de uma ópera nos anos 90 (sobre a qual falaremos em outro momento). Talvez só perca, em popularidade, para Lua Mansa, cuja beleza brejeira imediatamente nos transporta às serestas do passado.

Puleiro dos Anjos é a próxima faixa. É instrumental, dura cinco minutos e mostra a destreza e a pureza sonora que se obtém quando músicos do naipe de Alisson, Cristaldo, Marcelo, Frazê e Chico trabalham juntos.

É impossível ouvir o álbum e não viajar por uma Santa Catarina memorial... Depois da cantiga folclórica Boitatá, navegamos até o final do lado A do LP em tom de procissão com os Pescadores:


Ao virar o disco, a viagem segue rumo a oeste, quando os Recuerdos cantados em dialeto fronteiriço e acompanhados pelo cavabandorango de Alisson nos colocam no ponto de encontro entre Santa Catarina e Argentina. A sanfona falante de Cristaldo é a ponte para o agito serrano de Nó cego, a qual é interrompida pela introspecção do bandolim de Marcelo em Calabouço (composição que foi trilha de uma peça teatral de Clácio Espezim, quando o grupo ainda era chamado Vzero).

Em Pedra do Moinho já começamos a compreender a identidade autoral de alguns integrantes do Engenho. As letras de Alisson constantemente carregam um componente popular muito forte, marcado principalmente pelo recurso da repetição e da tradução cultural em frases simples que ganham sentido ao serem conectadas pela linguagem popular:

Texto da contracapa do disco
(2ª edição - 1981)
A pedra do moinho quebrou
A pedra do moinho quebrou
A pedra do moinho quebrou
O amor da morena se acabou

A toada Feijão com Caviar é uma canção simples no seu arranjo (executado apenas com violão e uns poucos itens de percussão), mas que chama a atenção para a forte oposição semântica da letra, carregada de antíteses culturais e lingüísticas. Fiquei surpresa ao descobrir, lendo o encarte do vinil, que esta música vem dos folguedos do Divino e do Terno-de-Reis.


João e Maria, ai, ai
Arroz e feijão
Panela, bacia,
Barriga vazia
Mosquito, injeção

John and Mary
Wischy*, poodle, bar
Estola, smoking, piscina,
Rolls Royce, caviar

* “Wischy” é a escrita apresentada no encarte do álbum.

A última música do lado B é a que dá nome ao disco. Ela desenvolve o manifesto que encerra o texto do encarte e incita o povo a mostrar sua força, através de uma união que se concretizava na unidade identitária do boi-de-mamão. Uma união tão necessária quanto a que se faz nos manifestos de hoje, se pensarmos na grave recessão econômica atravessada pelo país na época do lançamento do álbum. Por sinal, época do governo Figueiredo – o mesmo que, no ano anterior, foi hostilizado pelos manezinhos no episódio da Novembrada.


Todo esse repertório é acompanhado de arranjos cuidadosamente preparados, sendo constantemente acrescido de sons de molhos de materiais diversos que ora lembram o sacudir de uma rede, ora remetem à agitação dos bilros da rendeira, o estalar das conchas pisadas na praia ou as ondas do mar. Algumas faixas são atravessadas por gravações mais caseiras, de manifestações culturais da época, como o Boi do Allan; outras trazem coros, vocais de cantiga e palmas, sempre remetendo a detalhes de arranjo bastante tradicionais nos folguedos catarinas. Essa soma faz de Vou Botá Meu Boi Na Rua um álbum irrepreensível, feito à mão, que ainda inspira trabalhos da atualidade.

Voltando mais uma vez a este novo tempo de manifestos, nada mais adequado do que encerrar a resenha com a frase final do texto de apresentação (que você pode ler, na íntegra, clicando no texto da contracapa do disco):

O próprio grito “VOU BOTÁ MEU BOI NA RUA” denota, ao mesmo tempo uma homenagem ao boi-de-mamão já à beira do esquecimento, e um grito de revolta, de inconformismo.